
O ministro Celso de Mello, decano do Supremo Tribunal Federal (STF), resolveu soltar os cachorros — com a devida vênia por empregar uma metáfora quadrúpede — contra o que está a chamar de “pressão ostensiva para subjugar um juiz”. Deu declarações, vamos dizer, insólitas a um jornal de Tatuí e à colunista Mônica Bergamo, da Folha. Já chego lá. Vamos a algumas considerações prévias — sim, longas, como de costume.
Que bom
que Celso de Mello, nesta página, nunca esteve acima do bem e do mal,
nunca foi considerado um demiurgo, jamais foi tratado como alguém de
quem não se pudesse discordar. Como sabem os leitores — e aí estão os
arquivos, como sempre —, todas as vezes em que concordei com ele,
escrevi “sim”; quando discordei, escrevi “não”. Deu votos memoráveis no
processo do mensalão? Deu, sim! Equivocou-se de maneira brutal, por
exemplo, no caso das Marchas da Maconha? Sim. E eu o critiquei por isso.
Por quê? Porque o ministro exaltou, num tom verdadeiramente condoreiro,
a liberdade de expressão para permitir o que, de fato, se revela
apologia de um crime, o que também é crime, segundo o Código Penal. Como
ninguém atribuiu a Mello — nem a seus pares — competência para
legislar, achei que não lhe cabia ignorar o Código Penal. QUEM CONSIDERA APOLOGIA DO CRIME LIBERDADE DE EXPRESSÃO AINDA ACABARÁ CONFUNDIDO A LIBERDADE DE EXPRESSÃO COM UM CRIME. Entenderam?
E eu bati,
sim. Fui respeitoso, como de hábito, mas duro, como de hábito também. E
não economizei elogios quando achei que devia. Eu não concordo com
Celso de Mello, nem com qualquer outro, em princípio. Concordo quando
concordo — uma tautologia necessária nos dias que correm. Pois bem. Não
havia gostado, como observei aqui, no debate da VEJA e no programa Roda
Viva, do tom do voto do ministro no caso dos embargos infringentes.
Fugindo à sua lhaneza habitual, estava um tanto colérico, bravo,
cuidando menos da fundamentação técnica de seu voto — eu não considero
suas digressões históricas, nem sempre pertinentes, fundamento técnico —
do que da desqualificação dos votos divergentes. Então os outros
cederam apenas ao clamor das ruas? Então os outros não cuidaram do
devido processo penal? Então os outros não reconheciam o pleno direito
de defesa? Ora… Mais respeito com seus colegas, excelência!
Mais: em
seu voto, fez digressões absolutamente impertinentes — é isto: não sou
advogado, jurista, nada, e sustento a impertinência (quanto atrevimento
me garante a liberdade de expressão; eu, que só fumo Hollywood) — sobre
os infringentes e o duplo grau de jurisdição. Não precisei esperar o
julgamento para combater esse argumento tolo. Eu o fiz aqui, felizmente,
com todas as letras, no dia 23 de abril. Faz cinco meses. O título do post: “O equívoco de Celso de Mello e o esforço da tropa de Dirceu para desmoralizar ministros do Supremo”. Escrevi lá (em azul):
Ao
defender que os embargos infringentes são cabíveis, afirmou, leio na
coluna “Radar”, de Lauro Jardim, que eles funcionam como uma espécie de
duplo grau de jurisdição. Os condenados do mensalão que não exerciam
cargos públicos alegam que não tiverem esse direito porque seus
processos não foram remetidos para a primeira instância. Sempre que a
lógica é frontalmente agredida, o troço fica aqui dando pontadas no meu
cérebro, e me vejo obrigado a exercitar a discordância, nem que esteja
do outro lado o papa e que se trate de matéria teológica. Celso de Mello
é quase um papa no Supremo, e eu sou apenas um fiel seguidor das leis,
mas acho que ele agrediu a lógica.
Se
se trata, então, de ignorar a Lei 8038 (ver post anterior), admitindo
os embargos infringentes como expressão do segundo grau de jurisdição,
cumpriria indagar por que tal “direito” só será garantido a alguns réus,
mas não a outros. “Ah, porque eles tiveram os quatro votos
divergentes.” Mas isso nada tem a ver com o duplo grau de jurisdição;
trata-se apenas de matéria regimental, já vencida pela lei. O argumento é
ruim; não se sustenta. Ou bem se considera o Artigo 333 do Regimento
Interno (o que prevê embargos infringentes) em sua área restrita, ou bem
se tenta extrapolar, e, nesse caso, cumpriria, então não fazer justiça
seletiva. Infelizmente, a especulação de Celso de Mello abre uma vereda
para os chicaneiros acusarem todo o processo de ter sido uma farsa.
Cumpre lembrar que o próprio ministro recusou as tentativas de
desmembramento, o que implicaria enviar os casos dos réus sem cargos
públicos para a primeira instância. Ou bem se considera que o Supremo
agiu dentro da lei (e agiu) quando o manteve unificado, ou bem se
considera que não. Trata-se de um mau argumento de um bom homem.
Retomo
“E quem é você para apontar o equívoco de Celso de Mello?” Ora, sou alguém com direito de marchar em favor da maconha — licença que ele me deu, de que me dispenso — e alguém com direito de apontar os equívocos de Celso de Mello, licença que a Constituição me dá.
“E quem é você para apontar o equívoco de Celso de Mello?” Ora, sou alguém com direito de marchar em favor da maconha — licença que ele me deu, de que me dispenso — e alguém com direito de apontar os equívocos de Celso de Mello, licença que a Constituição me dá.
Ainda
mais quando não estou sozinho. Nunca exerci aqui o “argumento de
autoridade”, até porque não poderia. Deixo isso para os doutores. Faço, a
exemplo da imprensa honesta — que não está a serviço de um partido —, o
debate.
Muito bem! Para o jornal de Tatuí, Mello disse o seguinte:
“Há alguns que ainda insistem em dizer que não fui exposto a uma brutal
pressão midiática. Basta ler, no entanto, os artigos e editoriais
publicados em diversos meios de comunicação social (os “mass media’)
para se concluir diversamente! É de registrar-se que essa pressão, além
de inadequada e insólita, resultou absolutamente inútil”.
Eita! Não
se chama imprensa de “mass media”, acho, desde os tempos em que
professores de comunicação caceteavam os alunos com McLuhan — espero que
já tenham mudado de assunto, se é que ainda se fala de livros em curso
de jornalismo, sei lá… Desde quanto “artigos e editoriais” caracterizam
“pressão insólita e inusitada”? Digam-me cá: os artigos e editoriais da
subimprensa financiada por estatais e por gestões petistas — DINHEIRO
PÚBLICO NA VEIA — em favor da aceitação dos infringentes entram nessa
categoria? Os elogios rasgados que Celso de Mello recebeu — num deles, a
imagem de Joaquim Barbosa aparecia associada a um macaco — depois do
voto merecem também essa qualificação?
Ao conversar com a jornalista da Folha, Mello resolveu avançar. Leiam:
“Eu imaginava que isso [pressão da mídia para que votasse contra o pedido dos réus] pudesse ocorrer e não me senti pressionado. Mas foi insólito esse comportamento. Nada impede que você critique ou expresse o seu pensamento. O que não tem sentido é pressionar o juiz.”
“Eu imaginava que isso [pressão da mídia para que votasse contra o pedido dos réus] pudesse ocorrer e não me senti pressionado. Mas foi insólito esse comportamento. Nada impede que você critique ou expresse o seu pensamento. O que não tem sentido é pressionar o juiz.”
Então,
agora, a excelência se obriga a distinguir a “liberdade de expressão” —
que, a seu juízo, entendo eu, abriga até a apologia do crime — da
“pressão”. Quem o pressionou, ministro? Supõe-se que aquele que o faz
disponha de instrumentos para tanto. Quais?
A queixa
de Celso de Mello à coluna da Folha é longa. E ele jamais diz em que
momento a liberdade de expressão passou à condição de pressão. Aí,
julgando que já tinha batido bastante na ferradura, resolveu acertar ao
menos uma no cravo. Tentando ser magnânimo, falou uma bobagem. Prestem
atenção:
“Os meios de comunicação cumprem o seu dever de buscar, veicular informação e opinar sobre os fatos. Exercem legitimamente função que o STF lhes reconhece. E o tribunal tem estado atento a isso. A plena liberdade de expressão é inquestionável.”
“Os meios de comunicação cumprem o seu dever de buscar, veicular informação e opinar sobre os fatos. Exercem legitimamente função que o STF lhes reconhece. E o tribunal tem estado atento a isso. A plena liberdade de expressão é inquestionável.”
Errado, ministro!
O STF não nos “reconhece” nada, meu senhor! A liberdade de expressão é uma conquista da democracia, que encontra abrigo na Constituição da República Federativa do Brasil. Eu não sou livre para dizer o que penso porque o tribunal “reconhece” o que quer que seja; sou livre porque é o que está disposto nos Artigos 5º e 220 da Carta Magna, ora bolas!
O STF não nos “reconhece” nada, meu senhor! A liberdade de expressão é uma conquista da democracia, que encontra abrigo na Constituição da República Federativa do Brasil. Eu não sou livre para dizer o que penso porque o tribunal “reconhece” o que quer que seja; sou livre porque é o que está disposto nos Artigos 5º e 220 da Carta Magna, ora bolas!
Mello quer saber o que é pressão?
Mello sabe o que escreve a “mídia petista” sobre os cinco ministros que recusaram os infringentes? Pior! Ela o faz, insisto no ponto, com dinheiro público. Não deixa de ser uma espécie de mensalão, exercido por outros meios. É isto: ESTATAIS E GOVERNO PAGAM UM MENSALÃO A ESSES VEÍCULOS PARA QUE ELES:
a) falem bem do governo;
b) falem mal da oposição;
c) ataquem a imprensa livre;
d) ataquem os ministros do STF que não fazem as suas vontades.
Mello sabe o que escreve a “mídia petista” sobre os cinco ministros que recusaram os infringentes? Pior! Ela o faz, insisto no ponto, com dinheiro público. Não deixa de ser uma espécie de mensalão, exercido por outros meios. É isto: ESTATAIS E GOVERNO PAGAM UM MENSALÃO A ESSES VEÍCULOS PARA QUE ELES:
a) falem bem do governo;
b) falem mal da oposição;
c) ataquem a imprensa livre;
d) ataquem os ministros do STF que não fazem as suas vontades.
O próprio Celso de Mello foi alvo das baixarias quando decidiu que cabia ao Supremo a decisão sobre o mandato dos parlamentares condenados.
Pressão
vagabunda, ilegal e inaceitável foi a que fez uma revista, com amplo
financiamento oficial, ao acusar, por exemplo, o ministro Gilmar Mendes
de estar numa lista de beneficiários do esquema de Marcos Valério. A peça indigna veio
a público uma semana antes do início do julgamento. Dias depois, a
evidência: a lista era falsa, produto do trabalho sujo de um conhecido
lobista e estelionatário. Celso de Mello não ficou indignado?
Incomoda-se agora com editoriais? Ora, ministro…
Concluindo
No dia 18, escrevi um longo e respeitoso artigo sobre o voto de Celso de Mello. Dizia por que discordava dele, mas notava:
“À diferença do subjornalismo a soldo, financiado por estatais e por aliados do governo federal para atacar jornalistas, juízes e políticos da oposição, sei a diferença entre a divergência e a pura e simples desqualificação. Assim, não me divorcio do respeito que nutro por Celso de Mello”.
No dia 18, escrevi um longo e respeitoso artigo sobre o voto de Celso de Mello. Dizia por que discordava dele, mas notava:
“À diferença do subjornalismo a soldo, financiado por estatais e por aliados do governo federal para atacar jornalistas, juízes e políticos da oposição, sei a diferença entre a divergência e a pura e simples desqualificação. Assim, não me divorcio do respeito que nutro por Celso de Mello”.
Aquelas
minhas palavras continuam valendo. Por esse Celso de Mello, no entanto,
que passou a choramingar porque foi criticado; por esse Celso de Mello,
que toma divergência por “pressão insólita”; por esse Celso de Mello,
que classifica de “irracionais” os que dele discordam; por esse Celso de
Mello, que ignora as pressões exercidas pela imprensa oficialesca
contra seus colegas; por esse Celso de Mello, que finge ignorar que réus
(então)
como José Dirceu e João Paulo Cunha fizeram até plenárias Brasil afora para demonizar o STF, ah, meus caros, por esse Celso de Mello, não tenho respeito nenhum!
como José Dirceu e João Paulo Cunha fizeram até plenárias Brasil afora para demonizar o STF, ah, meus caros, por esse Celso de Mello, não tenho respeito nenhum!
O ministro
se aposenta em novembro de 2015. Já fez menção de antecipar a saída.
Àquele outro, que não confunde divergência com agressão, recomendei:
“Fica!”. A este, que diz prezar a liberdade de expressão desde que ela
não seja plenamente exercida, digo “Vai!”.
PS – Não
custa notar: ao decano, caberia, dadas as circunstâncias, desarmar os
espíritos, investir na concórdia, afastar o confronto. Por alguma
misteriosa razão — pode até ser só vaidade —, ele faz o contrário.
http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/
Excelente texto ,irretocável!
Do Mestre Reinaldo. insuperável!